Crítica: “Reencontrando a Felicidade”

Reencontrando a Felicidade (Rabbit Hole)

A morte e o luto. Duas fases que toda pessoa passará na vida, querendo ou não. Também vai aprender a superá-las com o doloroso decorrer do tempo. Tudo na vida tem um sentido e a morte pode ser interpretada como apenas um recomeço tanto para o falecido quanto as pessoas que continuam vivas. Os filmes, muitas vezes, retratam a vida e, consequentemente, a morte está ligada a várias obras. Muitos encaram a morte de uma maneira caricata, cômica explodindo os antagonistas pelos ares, enquanto outras têm a sensibilidade de tratá-la com mais cuidado expondo, pela ficção, as dores, os medos, os desabafos e o triunfante reerguer que os personagens sofrem para continuar com suas vidas.

Becca e Howie tentam retomar o rumo de suas vidas após a trágica morte de seu filho de quatro anos por um atropelamento bem em frente a sua casa. Os dois já não tem a mesma vontade de viver como antes. Sentem-se completamente perdidos. Entretanto, o destino sorri para Becca quando ela reencontra Jason, o motorista responsável pelo falecimento de Danny e aprende a perdoar, criando um forte laço de amizade com o adolescente.

A força das palavras

O roteiro é de David Lindsay-Abaire baseado em sua própria peça de teatro homônima. A riqueza, complexidade e profundidade de sua história e de seus personagens são inúmeras. É interessante ver o progresso no conflito interno/emocional que o casal passa e como lidam, separadamente, com seus próprios problemas. Becca faz o impossível, de todas as maneiras, afastar as pessoas que tentam lhe ajudar a superar a morte do filho, preferindo o absoluto isolamento da sociedade. Ela também aposta no desapego material das coisas de Danny esperando amenizar a dor, mas a única coisa que consegue é eternizá-la em suas memórias. Becca também não suporta a ideia de sua irmã, completamente desprovida de noção e bom-senso, ter engravidado enquanto seu filho é tirado dela.

Várias vezes a personagem se desentende com sua mãe alegando que não deve comparar a morte de seu irmão com a de Danny, já que um era um viciado e outro era uma criança, deixando claro que Becca ainda não entende que um filho, por mais problemático que tenha sido, continua sendo uma pessoa amada pela mãe. As coisas só começam a melhorar para a personagem quando ela começa uma amizade secreta com Jason encontrando um alívio e uma fuga para sua dor, visto que os dois estão muito abalados com o ocorrido mesmo que tenham passado oito meses. É nessa bela relação de perdão e ajuda mutua que o roteiro faz uma das mais belas e delicadas metáforas sobre o tema explicando o confuso título “rabbit hole”. Mesmo assim, a personagem vê a vida que seu filho não teve a oportunidade de ter através de Jason como se formar e ingressar na faculdade.

Howie é um personagem tão complexo quanto Becca. Ao invés de se isolar do mundo como sua esposa faz para atenuar o sofrimento, busca desesperadamente pelo contato humano que o console. Ele se enfia em grupos de terapia – os quais sua mulher não suporta alegando que as pessoas usam desculpas fajutas para justificar a perda de seus filhos fugindo para um aspecto religioso – com casais que passaram pela mesma experiência traumatizante. Às vezes, foge para o uso de drogas meio para também tentar amenizar a dor, sendo que descobre o verdadeiro significado do amor por Becca em uma dessas passagens. Ele apresenta muita carência afetiva já que Becca não faz esforço para ajuda-lo a superar essa fase difícil que estão passando. Ela sempre assume uma relação egoísta no caso, jogando a culpa para si e tomando várias decisões sem consultar Howie, explicitado pela briga clímax entre os personagens.

A trama é redonda. A noção de progresso é completamente ilusória e isso é feito propositalmente. Quando se perde alguém querido, não há como progredir e se recuperar em um piscar de olhos. Isso foi uma característica muito inteligente do texto, porque assim o tema não foge da abordagem realista que propõe.

Mesmo assim, tem um problema que me incomodou bastante. É praticamente impossível ficar envolvido no drama que os personagens tentam transmitir já que o espectador nunca conhece o filho do casal. Bom para o teatro, talvez, mas na telona, a falta do personagem (ou de sua história) deixa um buraco no fim. Assim, tudo acaba ficando distante como se o conflito não fosse um problema da plateia deixando transparecer uma relação de pseudossadismo entre os personagens e o público. Poucos sentimentos são compartilhados pela plateia com o filme como a enorme sensação de vazio quando o filme acaba tentando te convencer de que tudo acabará bem para o casal, quando na verdade ainda tem um caminho muito doloroso a se percorrer.

Nicole Drama

Não é de hoje que Nicole Kidman sempre participa de projetos com temas depressivos e complexos – talvez para tentar almejar uma indicação ao Oscar, como conseguiu neste caso. Kidman estava muito mal vista pela crítica nesses últimos tempos, mas parece que finalmente conseguiu sua redenção.

Como sempre, Kidman está completamente madura demonstrando uma seriedade assombrosa em sua personagem. Sua atuação é lotada de expressões secas, amargas, tristes e depressivas. Até mesmo em seu jeito tímido de andar que muda subitamente quando sua personagem tenta mudar a situação em que vive. Seus olhares perdidos são tão profundos que o espectador cria uma forte conexão com ela conseguindo adivinhar até os pensamentos da personagem. As expressões de tristeza dão lugar às de alivio e paz interna momentânea enquanto a atriz contracena Miles Teller que, por sua vez, consegue criar um psicológico interessante de seu personagem deixando transparecer a grande culpa e pouca autoconfiança que ele carrega.

Aaron Eckhart demonstra um desempenho muito mais interessante do que aquele mostrado em “Invasão do Mundo”. Seu personagem tem uma relação conturbada com a de Kidman, assim mostra uma química (ou a falta dela) muito boa entre os dois atores. Ele deu conta do recado e mostrou ser capaz de interpretar um personagem em um estado emocional delicado. Além disso, consegue se expressar bem em cena, principalmente a dor e a dúvida que Howie sente.

Dianne Wiest é outro espetáculo em cena. Wiest já ganhou dois Oscar e tem vasta experiência no gênero. Sua atuação dispensa comentários, ela está muito confortável no papel. É a personagem que consegue firmar os pés no chão e superar as adversidades da vida, mas mesmo com esse aparente jeito de invulnerabilidade, demonstra toda a fragilidade que toda mãe deve ter e não aguenta as duras críticas da personagem de Nicole.

Tammy Blanchard, Sandra Oh, Giancarlo Espósito e Jon Tenney completam o competente elenco. Em suma, todos os atores trabalham muito bem em grupo, ou seja, em nenhum momento um ator ofusca a presença do outro.

Quebrando barreiras

A fotografia de Frank G. DeMarco também é depressiva como o filme inteiro. Opta por cores sombrias, pálidas, frias, gélidas e esbranquiçadas/acinzentadas completamente desprovidas de emoção assim como a protagonista. Ela é um aspecto do filme que casa perfeitamente com a personagem protagonista.

Somente nos trechos que se passam no parque quando Becca conversa com Jason, as cores ficam pouco mais vivas. Entretanto, mesmo com imagens belas, todas transmitem tristeza e solidão que a personagem vive. Seus planos-detalhe são belíssimos e cada um deles conte um significado a ser interpretado para cada espectador. Como os que focalizam o desenho de Jason, a água molhando as flores, a terra forte e rude, a fritura da comida, o terno e desesperado abraço de Howie com seu cão, a máquina de lavar, etc. Para mim, todas elas buscam a textura, o mundo palpável, o contato físico com os objetos que parecem ter sido esquecidos pela personagem.

Após o grande close da máquina de lavar, existe o plano mais importante e belo do filme. Nele, encontra-se apenas a silhueta de Kidman na imagem iluminada por uma fraca fonte de luz. Ali é retratado o enorme vazio que a personagem sente, como se seu corpo e alma não estivessem mais ali, apenas sua sombra esquecida e cansada apoiada debilmente no cesto de roupa suja. Destaque para a modelagem de luz nas cenas na sala de estar que, aparentemente, foi realizada apenas com os abajures que estavam em cena.

Protagonista da vez

A música de Anton Sanko rouba a cena diversas vezes. Sua trilha é uma das mais belas que já ouvi, mesmo que emanando uma profunda tristeza em todas as composições do filme. Ele utiliza vários instrumentos a seu favor como arpejos agudos e suaves no violão, várias notas calmas em uma espécie de flauta e um casamento de notas das cordas do violão e do piano. Apenas com estas composições simples e marcantes, tenta roubar lágrimas de seus olhos. A trilha nunca chega a ser melodramática e ridícula. Ela, simplesmente, funciona perfeitamente na cena.

O violino fica esquecido em várias musicas, mas quando aparece, todo o conjunto da obra torna-se muito forte praticamente esmagando seu peito contra um piso gelado como acontece na composição que fecha o filme – prepare-se!

Outra característica da trilha é ser cíclica. Ou seja, as músicas vão te emocionar de qualquer maneira graças isso. As escalas repetem-se diversas vezes parecendo que estão perdidas na partitura assim, como a protagonista está completamente desprovida de base na história. E também foge de finalizações pomposas, sempre optando terminar suas musicas no meio de alguma nota que passa despercebida aos ouvidos do espectador aumentando ainda mais a sensação de solidão – algo que estava logo ali e que, momentaneamente, desaparece… Abandona, simplesmente, o espectador.

Conversando com o público

Quem assume a direção do filme é John Cameron Mitchell, um diretor pouco conhecido. E é uma ótima surpresa.  O modo que conduz seu filme e seu elenco é único e encantador. O diretor possui muita delicadeza e sensibilidade em retratar um tema tão pesado e complexo como este – preste atenção no fim do filme!

O desenho de Jason é um apontamento de sua direção. A história do filme todo está naquele desenho e seus personagens são representados pelas colagens, afinal todos eles dependem, essencialmente, de uns aos outros – se um cair, a obra perde a sintonia.

Maneja, também, suas câmeras de maneira muito interessante e inteligente. Repare que, muitas vezes, a imagem se aproxima e se afasta do espectador a fim de deixá-lo desconcertado, tirar a sensação de estabilidade e enfatizar a dramaticidade da cena sendo que algumas vezes ele utiliza o truque da “câmera nervosa” deixando a imagem tremula.

Sua direção é brilhante por conseguir se comunicar com o público abertamente e encontrar vertentes para o humor e as fazendo funcionar – sim, o longa conta com algumas piadinhas – no meio de um tema muito triste. Cada cena do filme tem um significado para sua existência e te deixa reflexivo por um bom tempo.

Reencontrando a felicidade?

Com um título pobre, infeliz e enganoso, “Reencontrando a Felicidade” é um filme emocionalmente. Infelizmente, não consegue te envolver na maioria do tempo o que é um problema gritante. As poucas vezes que te emociona, provém muito de sua bela música, apesar de ser tecnicamente e artisticamente muito expressivo. Ele é sim um filme pesado e pouco recomendável para quem está em depressão ou anda de mal com a vida. Só assista se estiver muitíssimo feliz, porque senão quando o filme acabar quem vai ter de reencontrar a felicidade será você. Mesmo assim se você for e ficar triste, procure uma comédia em alguma outra sala. Assim, o equilíbrio torna-se perfeito!

NOTA: 3.5/5.0


Publicado em Críticas por Matheus Fragata. Marque Link Permanente.

Sobre Matheus Fragata

Formado em cinema pela UFSCar. Jornalista especializado em Entretenimento. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas. Tenho sonhos em 4K, coloridos e em preto e branco.

5 respostas em “Crítica: “Reencontrando a Felicidade”

    • Ótimo resumo, Alan hahahaha
      Mas preste atenção no que eu disse – não vá assistir esse filme se estiver um pouco depressivo, ele te afeta demais mesmo sem você ficar envolvido nele.
      Abraços!

      Curtir

Deixe um comentário